segunda-feira, 7 de março de 2011

O toque de recolher e o direito infanto-juvenil

Aniêgela Sampaio Clarindo

Em algumas comarcas brasileiras juízes das varas de infância e juventude têm instituído através de portarias o "toque de recolher". O termo significa a limitação da circulação de crianças e adolescentes pelas vias públicas e em estabelecimentos até certo horário da noite. A partir de então necessitam fazê-lo acompanhados de um maior responsável. A simples emissão de uma portaria não significa extrapolar competência. Os membros do Poder Judiciário possuem uma parcela de capacidade para legislar que é permitida pelo ordenamento brasileiro. O art. 149 da Lei nº 8.069/90 (ECA) lista hipóteses nas quais o magistrado pode disciplinar situações que envolvam menores de idade através de portarias e alvarás. Permite-se a limitação do direito de ir e vir com vistas à proteção da saúde física e psíquica dos menores. A polêmica reside no fato de que o artigo não acrescenta a situação correspondente ao "toque". A corrente contrária defende a ilegalidade da medida pela ausência de previsão. O direito de livre locomoção, sendo fundamental, não pode ser restringido fora das hipóteses elencadas em lei. O juiz poderia decretar o "toque" na vigência do antigo Código de Menores porque possuía um poder normativo cuja decisão prescindia de fundamentação. O "toque" é uma tentativa de substituir as necessárias atuações dos Poderes Legislativo e Executivo, bem como da família e da sociedade em conjunto. Os que desejam a manutenção das portarias lembram que o ECA institui o princípio da prevenção. Deve-se zelar pelo saudável desenvolvimento de crianças e adolescentes prevenindo sua exposição a situações de risco. O próprio ECA elenca hipóteses de limitação do direito de ir e vir com esta finalidade. A interpretação do art. 149 tem de ser sistêmica, levando-se em conta a relação deste dispositivo com todos os princípios da lei. O juiz pode decretar o "toque" fundamentando-o. Para isso deve ouvir a comunidade e os órgãos de proteção ao menor. Respeitando o devido processo legal e apresentando-se um aparato estatal satisfatório para a vigilância, a medida pode vigorar. Em todo caso o menor deve ser abordado e encaminhado aos pais conforme os ditames do ECA. Conclui-se pela legalidade da medida preventiva, a ser decretada e aplicada em consonância com os requisitos expostos. A temática é interessante por abordar a limitação a um direito fundamental infanto-juvenil. A metodologia consiste em levantamento bibliográfico, abrangendo a legislação, artigos de doutrina e notícias de jornais, em fontes impressas e na internet.


INTRODUÇÃO


Ao Poder Judiciário está reservada parcela de competência legislativa, a ser exercida nos casos expressamente já expostos em lei. Um exemplo disto seria a função que o juiz da vara de infância e juventude possui de emitir portarias e alvarás, em conformidade com o art. 149 do ECA. Este dispositivo considera as hipóteses nas quais o magistrado disciplinará a entrada e a permanência de crianças e adolescentes em determinados lugares, atendendo-se, em contrapartida, a uma série de requisitos, também elencados pelo dispositivo. Dois destes requisitos são: o atendimento aos princípios da Lei nº 8.069/90, as peculiaridades locais e a fundamentação constante no ato normativo decretado.

Justificando sua postura, sobretudo, nos apelos da comunidade e na efetivação do princípio da prevenção, alguns magistrados têm decretado em portarias a limitação de horários para que infantes e jovens circulem sozinhos, à noite, pelas vias públicas e em determinados estabelecimentos. As medidas encontraram resistência no meio jurídico, sob os argumentos de que o ECA não elenca a possibilidade da instituição de uma espécie de "toque de recolher" e também no fato de que o juiz estaria confundindo seu papel atua com o extinto poder normativo do juiz de menores.

O presente trabalho abordará a polêmica, iniciando pela breve explicação da função legislativa que remanesce ao judiciário, passando em seguida à exposição dos fundamentos das correntes contra e em prol do "toque". A relevância da temática é inconteste, pela abordagem de princípios norteadores do direito infanto-juvenil em relação ao direito de livre comoção, questionando-se os limites que podem ser impostos a este último em nome da proteção integral. Realizou-se pesquisa bibliográfica, que abrangeu consulta a artigos científicos e reportagens jornalísticas disponíveis em fonte impressa e em meio eletrônico (internet), além da legislação pertinente.

A FUNÇÃO LEGISLATIVA QUE CABE AOS JUÍZES DAS VARAS DE INFÂNCIA E JUVENTUDE


O princípio da separação dos poderes à primeira vista consagra a divisão de funções entre o legislativo, o executivo e o judiciário de modo que não haja interpenetrações entre as três esferas de poder. Somente uma delas, aparentemente, exerceria a atividade legiferante, incluindo-se toda a sorte de atos normativos. O estudo da ciência jurídica, contudo, revela a inexistência de regras às quais não possam ser aplicadas, eventualmente, exceções. Embora o art. 2º da CF/88 consagre que o legislativo, o executivo e o judiciário são "harmônicos e independentes", o termo independência não corresponde à completa distância, havendo a possibilidade de que os poderes se limitem reciprocamente. Isto ocorre através da cooperação entre os órgãos especializados e o inter-relacionamento das atividades por eles desenvolvidas para que o "poder limite o poder", no chamado sistema de "freios e contrapesos" (GABRIEL, 2009).

A legislação infraconstitucional, após o advento da CF/88 passou a balizar a parcela de atividade legislativa que coube ao judiciário e ao executivo, especificando as situações nas quais isto é cabível, e o procedimento para que fossem válidos os atos normativos não oriundos do legislativo. Atendendo à proposta deste trabalho, será a abordagem restrita à competência do judiciário concernente à confecção dos atos referidos, no âmbito da justiça especializada na infância e juventude.

O art. 149 da lei nº 8.069/90 determina:
Art. 149 - Compete à autoridade judiciária disciplinar, através de portaria, ou autorizar, mediante alvará:

I - a entrada e permanência de criança ou adolescente, desacompanhado dos pais ou responsável, em:

a) estádio, ginásio e campo desportivo;
b) bailes ou promoções dançantes;
c) boate ou congêneres;
d) casa que explore comercialmente diversões eletrônicas;
e) estúdios cinematográficos, de teatro, rádio e televisão;
II - a participação de criança e adolescente em:
a) espetáculos públicos e seus ensaios;
b) certames de beleza

Esta espécie de função que o magistrado possui é denominada anômala, por escapar das atribuições inerentes à atividade judicante. A portaria e o alvará são instrumentos que possibilitam a regulamentação mais esmiuçada de dispositivos legais preexistentes, tendo em vista os graus de abstração e generalização destes. A redação do art. 149 continua, sinalizando os fatores que justificam a expedição de alvarás e portarias:


§ 1º - Para os fins do disposto neste artigo, a autoridade judiciária levará em conta, dentre outros fatores:

a) os princípios desta Lei;
b) as peculiaridades locais;
c) a exigência de instalações adequadas;
d) o tipo de freqüência habitual ao local;
e) a adequação do ambiente a eventual participação ou freqüência de criança e adolescentes;
f) a natureza do espetáculo .

§ 2º - As medidas adoradas na conformidade deste artigo deverão ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral .

A validade de portarias e alvarás está condicionada à obediência da regra insculpida nos parágrafos primeiro e segundo do art. 149, não se constituindo em atitude de cunho meramente discricionário. O objetivo desta norma é efetivar, entre outros princípios, o da prevenção, enunciado no art. 70 da lei nº 8069/90: "É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente". A leitura do dispositivo deve ser realizada em conjunto com a do caput do art. 227 da CF/88:

Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Ao contrário do que comumente a sociedade conhece a respeito do ECA, a lei menorista não restringe o seu alcance às situações de delinqüência infanto-juvenil, ressaltando, também, a responsabilidade de todos (família, sociedade e Estado) na tomada de medidas preventivas, visando afastar crianças e adolescentes de qualquer situação em que potencialmente possam ter seus direitos lesionados. A função anômala dos juízes da infância e juventude possibilita a tomada destas medidas, no âmbito local (das comarcas).

Situação que tem gerado polêmica é a respeito de haver ou não permissão legal para que o magistrado, através de portaria, convencione restrições à circulação noturna de menores de dezoito anos pelos logradouros públicos, fixando um horário para que isto aconteça sem que seja imprescindível o acompanhamento por um adulto. Isto porque o art. 149 não estipula expressamente este caso, fazendo com que juristas se dividam a respeito da validade de portarias com este teor que já foram editadas em algumas comarcas brasileiras.

O "TOQUE DE RECOLHER" E AS OPINIÕES CONTRÁRIAS


Em cidades do interior de São Paulo foram expedidas pelas varas de justiça da infância e juventude portarias de conteúdo similar, vedando, a partir de determinado horário, a circulação de menores desacompanhados dos pais ou responsáveis. A medida adotada nas cidades de Fernandópolis, Ilha Solteira e Itapura foi taxada pela imprensa como o "toque de recolher", situação que foi imitada no município paraense de Cambará, onde a juíza responsável determinou em portaria a limitação de horários para que menores estivessem desacompanhados em bares, restaurantes e lanchonetes. Além de São Paulo e Paraná, a medida foi decretada em cidades do interior paraibano, a exemplo de Taperoá. Em 2009 já se contabilizavam, ao todo, 21 cidades em oito estados do país onde o "toque" passou a vigorar.

Em todos os casos, os magistrados fundamentam suas decisões no argumento de que a comunidade destas localidades clamava por uma medida urgente que contribuísse para a redução dos casos de atos infracionais e envolvimento de menores com álcool e drogas ilícitas, situações normalmente verificadas após nove ou dez horas da noite.

Em relação aos índices de violência praticada por menores, notícia veiculada no portal eletrônico do jornal O Estadão (SIQUEIRA, 2009) confirma que, após ter sido imposto em maio de 2005, o "toque" ajudou a reduzir em 80% o cometimento de atos infracionais e em 82% o número de reclamações dirigidas ao Conselho Tutelar, na comarca de Fernandópolis. Em 2005, foram 378 ocorrências, contra 329 em 2006; 290 em 2007; e apenas 74 em 2008. A redução também acompanha outras ocorrências, como porte de entorpecentes, de 17 casos para 8; lesão corporal, de 68 em 2005 para apenas 19 em 2008.

Apesar do considerável avanço demonstrado, alguns operadores do direito se opõem rigidamente à edição de portarias que condicionem a certa faixa de horários a circulação de menores de dezoito anos nas ruas. Isto representaria uma violação indevida ao direito de livre locomoção, consoante se encontra insculpido no inciso XV do art. 5º da CF/88:

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XV- À livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

A competência disciplinar do juiz da infância e juventude, na medida em que permite limitar o exercício de direitos infanto-juvenis, deverá então restringir-se aos casos expressamente elencados no caput do art. 149 do ECA. Entender que o magistrado poderia expedir portarias e alvarás em outras situações seria um retorno indevido à antiga lei menorista, o Código de Menores da década de setenta, o qual rezava em seu art. 8º:

Art 8º - A autoridade judiciária, além das medidas especiais previstas nesta Lei, poderá, através de portaria ou provimento, determinar outras de ordem geral, que, ao seu prudente arbítrio, se demonstrarem necessárias à assistência, proteção e vigilância ao menor, respondendo por abuso ou desvio de poder.

Tratava-se do extinto poder normativo do juiz de menores, a ser exercido sem parâmetros específicos, em consonância com a Doutrina da Situação Irregular. Na época as crianças e adolescentes não eram vistos como sujeitos de direitos, devendo submissão quase que irrestrita às determinações das autoridades judiciárias e policiais (SILVA, In: CURY, 2006). Desta forma, aceitar que o magistrado a seu bel prazer trace normas de comportamento sem que sua atitude esteja justificada pela Lei nº 8.069/90, cujo espírito é o posto daquele que permeava o anterior Código, significa, contraditoriamente, zelar pelo princípio da prevenção através de uma violação ao próprio texto legal.

Conforme pesquisa do IBGE com dados coletados entre 2000 e 2006, percebe-se que a questão da violência infanto-juvenil é extremamente complexa, não merecendo uma solução de cunho simplista. Em 2009 o referido órgão publicou a pesquisa completa, na qual se constata que o aumento das redes de tráfico de drogas, a ineficácia das políticas públicas, a impunidade e a fragmentação das relações familiares contribuíram para o aumento da violência no Brasil, especialmente dos homicídios nos últimos anos. Os homens jovens, pobres, na faixa de 15 a 29 anos de idade são, ao mesmo tempo, as principais vítimas e os principais agentes da situação que afeta a sociedade de modo geral (GONÇALVES; MAIA, 2009).

Por isso entende-se o motivo pelo qual o princípio da prevenção se efetiva através de ações coordenadas tanto pelo Estado na esfera judiciária, como pela atuação dos poderes executivo e legislativo, não se olvidando, ainda, as participações da família e da comunidade. A adoção do "toque de recolher" é medida que tenta suprir, de maneira desesperada e ineficaz, a ausência de políticas públicas ou a precariedade das que já existem na área infanto-juvenil, a insuficiência dos aparatos de segurança pública e o sentimento de descompromisso em relação à proteção dos direitos infanto-juvenis que ainda permeia grande parte da sociedade (FERREIRA; BATALHA, 2009).

OS ARGUMENTOS EM PROL DO "TOQUE"


Para os que apóiam as medidas tomadas pelos juízes das cidades retro citadas, não vinga o argumento de que o "toque de recolher" significa privação indevida da liberdade de locomoção. Conforme o inciso I do art. 16 do ECA, o direito à liberdade de ir e vir nos logradouros públicos e espaços comunitários não é absoluto, estando seu exercício condicionado à obediência das restrições legais. A título exemplificativo reporte-se ao art. 82 da Lei nº 8.069/90, onde se encontra a proibição de hospedagem de menor em "hotel, motel, pensão ou estabelecimento congênere, salvo se autorizado ou acompanhado pelos pais ou responsável". Percebe-se, assim, que a limitação à liberdade do menor não é exclusivamente imposta por ocasião da aplicação de medidas sócio-educativas, mas sempre que se mostrar imprescindível à proteção integral da criança e do adolescente, tendo em vista sua peculiar condição de seres em desenvolvimento físico e psíquico (ARAÚJO, 2009).

De fato, a redação do inciso V do parágrafo terceiro do art. 227 da CF/88 dá margem a este raciocínio, na medida em que obriga a obediência aos critérios de "brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade;". Restringir a livre circulação de crianças e adolescentes deve ser um ato fundamentado, portanto, no respeito ao saudável crescimento infanto-juvenil, tendo em vista as peculiaridades da comunidade na qual o infante e o jovem estejam, por ventura, inseridos.

As portarias que instituem o "toque" não são ilegais porque possuem um caráter preventivo, no sentido de garantir que crianças e adolescentes não sejam expostos a situações de risco, conforme aduz o juiz da comarca de Fernandópolis, Evandro Pelarin (2009). Para ele o elemento preventivo do "toque" é justamente o que não o torna propriamente uma medida de privação da liberdade. O ato de abordar nas ruas meninos e meninas em situação de risco, conduzindo-os para suas casas em seguida, juntamente com recomendação dirigida aos pais ou responsáveis é cumprir o mandamento da proteção integral, garantindo que crianças e adolescentes tenham "desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade" (art. 3.º da Lei nº 8.069/90).

Reza o art. 70 do ECA: "É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente". A atuação do juiz não pode restringir-se, portanto, aos casos em que já se verifica a violação aos direitos infanto-juvenis; indo mais além, cabe à autoridade judiciária garantir, dentro da sua competência, a maior redução possível da exposição infanto-juvenil a situações que atentem contra o seu saudável crescimento físico e mental.

Aliás, tocando na questão da competência, embora não esteja inserido expressamente no rol do art. 149 do ECA, existe sim a permissão legal para a instituição do toque, tendo-se em conta como a Lei nº 8.069/90 deve ser interpretada. Diz o art. 6º:

Art. 6º - Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

Não se deve considerar, pois, que a intenção do legislador fosse a de elencar taxativamente as hipóteses em que se permitem a edição de portarias e alvarás, conforme entende Denilson Cardoso de Araújo (2008). A Lei 8.069/90 deve ser submetida a uma interpretação de cunho sistêmico, tendo em vista a própria lógica jurídica de que nenhum dispositivo legal impera sozinho e absoluto, principalmente aqueles referentes ao direito infanto-juvenil, tendo em vista a recorrente relação que se estabelece entre estes e a CF/88. O autor ilustra sua explicação, aludindo à redação do art. 122 do ECA: "A medida de internação só poderá ser aplicada [...]" onde se denota explicitamente a intenção do legislador em enumerar um rol definitivo, o que não ocorre na redação do art. 149.

Reforçando a tese, tem-se o art. 72 determinando: "As obrigações previstas nesta Lei não excluem da prevenção especial outras decorrentes dos princípios por ela adotados." Estaria assim consagrado que a emissão de portarias e alvarás, antes de obedecer a uma lista meramente exemplificativa, deve se dar em acordo com a necessidade de se garantir a proteção integral através de medidas preventivas.

Embora a violência infanto-juvenil e a exposição de menores a situações de risco sejam questões complexas porque envolvem a omissão ou atuação insuficiente não apenas do judiciário, mas sim do Estado como um todo, o "toque de recolher" não significa ignorar a obrigação que os demais poderes possuem, dentro de suas competências. Continuam restando ao executivo e ao legislativo o cumprimento de deveres nos quesitos segurança pública e políticas públicas voltadas para menores de idade.

A emissão de uma portaria semelhante às que estão sendo discutidas neste trabalho deve respeitar o devido processo legal. Consoante o magistrado Evandro Pelarin (2009), não está eivada de ilicitude a determinação judicial que está devidamente fundamentada, conforme manda o art. 149 do ECA. Ilustrando a regra com circunstâncias da sua portaria, o juiz explica o caminho percorrido até a vigência desta: após receber reclamações emanadas de populares e associações de bairro, a partir de uma petição do Ministério Público local, o Poder Judiciário determinou a formação de uma força-tarefa, com a atuação conjunta das Polícias Civil e Militar e do Conselho Tutelar. A OAB foi convidada para fiscalizar as ações desta força-tarefa.

Percebe-se que a instituição do "toque" não representa o exercício do extinto poder normativo do juiz de menores, pois a própria legislação menorista atual impõe a necessidade de fundamentação, quesito este cuja ausência é o que caracterizava um poder quase absoluto e ditatorial nas mãos do antigo juiz de menores.

O magistrado ainda ressalta que o tratamento dado aos infantes e jovens encontrados, altas horas da noite, sozinhos e expostos a situações em que se verificava o consumo de álcool e drogas ilícitas, eram conduzidos em viatura do Conselho Tutelar, sem algemas, de acordo com as diretrizes do ECA. Eram encaminhados aos pais ou responsáveis, que deveriam, por sua vez, assinar um termo de compromisso. Caso o menor fosse novamente flagrado na mesma situação, os responsáveis poderiam ser penalizados consoante os dispositivos do ECA, a exemplo da aplicação de multa. Não se pretende usurpar dos pais a tarefa de educar e vigiar seus filhos menores, e sim colaborar com ela, inclusive conscientizando genitores e responsáveis legais omissos.

Alguns aspectos devem ser considerados, contudo, para que a decretação da medida do "toque" seja viável na prática. É necessário, antes de sua instituição, uma consulta aos órgãos de representação popular, ou diretamente exercida na comunidade, para que se verifique a necessidade da medida. Também não se deve ignorar que as Polícias devem dispor de um numero mínimo de policiais disponíveis para esta tarefa específica, bem como os Conselhos Tutelares devem disponibilizar Conselheiros nos dias e horários em que funciona a força-tarefa. Deve-se, em suma, atender às peculiaridades locais e à exigência de instalações adequadas, aspectos de cunho prático impostos pelo parágrafo primeiro do art. 149 do ECA.

CONSIDERAÇÕES FINAIS


A instituição do "toque de recolher" à primeira vista parece oriunda de um ato totalmente discricionário, revelando inclusive um suposto caráter ditatorial. Na realidade cada caso concreto deve ser analisado, sob pena de se formar uma opinião generalizada, e portanto, ingênua.

Quando a comunidade de alguma maneira alerta os órgãos do Poder Judiciário ou quaisquer outros que possam atuar em defesa dos interesses dos menores, não pode ser ignorada, sob o singelo argumento de que o ECA não prevê expressamente a imposição da limitação de horários. É desnecessário o lançamento de dados estatísticos para a realidade que grita, no cotidiano da população, o crescente envolvimento infanto-juvenil em situações de violência e submissão a hábitos nocivos e degradantes. Em respeito à imaturidade natural da condição do menor, deve-se protegê-lo, aplicando-se, contudo, parâmetros na aplicação de qualquer medida preventiva.

Desde que o menor não seja tratado como um "criminoso", esteja presente um membro de seu respectivo órgão de proteção (conselho tutelar) e haja, na localidade, aparato estatal necessário, a medida do "toque" é possível de ser aplicada. Caso seu decreto tenha seguido os trâmites procedimentais necessários, deve-s esperar se a aplicação da medida surte os efeitos desejados, podendo assim ser discutida futuramente sua manutenção ou não. A própria instituição da portaria que regulamenta a circulação noturna de menores serve de alerta à sociedade como um todo e à família de cada criança ou adolescente, em relação à necessidade de se cobrar de todos os poderes estatais o compromisso que cada um deveria honrar relacionado ao respeito aos direitos e garantias infanto-juvenis elencadas na CF/88.


CLARINDO, Aniêgela Sampaio. O toque de recolher e o direito infanto-juvenil. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2802, 4 mar. 2011. Disponível em: . Acesso em: 6 mar. 2011

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